Novo romance, primeiro capítulo (refeito, o outro estava horrível!)
Deletei o outro post, subi o capítulo sem relê-lo. O final estava muito ruim. Agora, sim, posto novamente, com o final reescrito. Como sempre digo, sou escritora da reescrita, nada meu sai pronto.
Lord, won´t you buy me
Para Mari, que sempre encontro no ônibus a caminho do trabalho, Eli, que conheci na volta para casa e a todas as trabalhadoras com jornada dupla, tripla...
Capítulo 1
Maria Cecília
Maria Cecília pensou na avó. As suas últimas palavras foram sobre Salvador. Prometera que, assim que saísse daquele hospital, iriam para lá. Morrera naquele mesmo dia. Cecil já tinha voltado para casa ao ver as ligações perdidas no celular. Sua mãe conseguira o número com o padrasto. Olhou pelo espelho a risca no azulejo, ao lado do aviso “Meninas! Queiram, por Deus e por gentileza, manter o banheiro limpo ao saírem do mesmo…”. Uma morena, baixa, o casaco cinza e branco acomodado nos ombros estreitos, alisava a mecha do cabelo pela prancha. Sua colega, loira, o tom de pele opaco, fechava um dos olhos para passar sombra na pálpebra. Falavam da alameda que margeava a orla, os coqueiros mansos. O céu era pintado de azul, só podia, tão lindo assim! Valdo tinha planejado voltar para Salvador.
“Ele já estava com as passagens, coitado.”
“Que azar, ele falava tanto dessa viagem. De se aposentar. Voltar com a mulher pra cidade onde criou os filhos.”
A loira terminou um olho. Fechou o outro, já maquiado. Lembrou de um tio-avô. O quinto irmão do avô.
“Também morreu um dia antes de aposentar. Minha mãe sempre conta essa história.”
A morena rememorou outro caso parecido. Do tio de uma amiga.
“Faltava pouco pra aposentar.” Esticou com força a franja, sob uma fumaça rala. “Foi um ataque fulminante. Minha amiga diz que nem teve tempo de terminar de pagar um instrumento que ia aprender a tocar quando fosse aposentado. Como era mesmo o nome do instrumento? De sopro? Não sei. No final, a tia dela tinha que olhar praquele trambolho na sala, sem dinheiro pra pagar o que faltava. E sem poder vender.”
“Tio Ramalho tinha a mesma idade de Valdo quando morreu. Que coincidência!”
Valdo trabalhava no almoxarifado da empresa. Havia trabalhado em outros setores, mas voltou ao almoxarifado por desentendimentos com o chefe. Estava em processo de aposentadoria. Aproveitou para finalmente comprar uma casa no Alto da Terezinha, onde havia morado quando os filhos eram pequenos. Ele sempre gostou daquela região. Dizia a Amélia que deveriam voltar para lá quando ele se aposentasse, comprar aquele sobrado verde-claro que o amigo tinha posto à venda não fazia muito tempo. A algumas semanas de se aposentar comprou as passagens para Salvador, fariam a primeira de muitas idas e vindas até que se estabelecessem em definitivo naquele sobradinho verde-claro com vista para o céu. Não conseguiu sequer completar a primeira ida-volta Salvador-São Paulo, morreu no caminho para o que seria seu último dia de trabalho. Fora atropelado ao atravessar uma rua pouco movimentada. “Estava na faixa de pedestre”, o que Amélia gritava no hospital, agarrada à mão gelada do marido.
A idade de Valdo, o instrumento de sopro; Cecil queria ter a resposta certa para iniciar uma conversa com aquelas duas que sempre encontrava no banheiro do trabalho. Não tinha e a menção a Salvador era uma espécie de sedativo, seu cérebro se recusava a ouvir algo diferente da voz envelhecida da mãe tentando lhe explicar o que tinha acontecido com sua avó. Aquela voz, que havia muito não ouvia, a retomava aos olhos caídos da avó, menores pelo esforço e cansaço para que continuassem abertos.
A morena sorriu. Parecia prender os lábios, para que não manchassem os dentes. O sorriso sem direção atingiu tanto Cecil quanto o aviso ao lado da risca no azulejo.
“Oi, Té!”
“Oi, meninas.”
A loira ensaiou o nome Valdo, a morena se demorou com as sílabas na boca, disseram juntas, “coitado do Valdo!”, para Maria Teresa, que as espreitava com balde e rodo: “Diz que ele ainda estava vivo no hospital.”
“Os médicos nem quiseram atender.”
“A gente não sabe. Aquele carrão fez um estrago, não tinha como sair vivo dessa.”
Maria Teresa fez um muxoxo, uma espécie de reza dirigida à loira; “nas mãos certas, sempre é possível sair vivo dessa”, o que se ouviu daquele estalo. Encheu o balde com uma mangueira abaixo da pia. Anunciou a hora, hora de limpar o banheiro. Precisava que as meninas saíssem de lá, abandonassem o espelho com metade do olho borrado, uma mecha de cabelo reta entre fios espetados, a leitura inacabada do aviso.
“Estão maravilhosas, meninas”, a voz fraca arriscava algum elogio apressado que sobrepujasse a repreensão por ainda estarem no banheiro naquele horário.
Valdo ainda era o assunto quando deixaram o banheiro. Todos na empresa falavam da tragédia, de como estaria Amélia, do choque de um carro de luxo contra aquele corpo mirrado. Cecil arriscou um suspiro às duas, conhecia muito pouco da história de Valdo. Soube seu nome naquele dia apenas. Antes o via como o homem de bigode grisalho que a fazia assinar o nome e o número da funcional em troca de uma resma de sulfite. Lembrou de quando esteve envolvido em uma briga. Algo como um xingamento a um supervisor de outro departamento, mas não tinha certeza. Cada um contava uma versão diferente daquela cena e ninguém se entendia entre mocinho e vilão da história. Alguns falavam em insubordinação, demissão por justa causa em qualquer outra empresa. Outros falavam em assédio moral. Cecil se preocupou consigo, com o quanto deveria ser obediente para evitar uma demissão por justa causa. Por fim lamentou a falta que Valdo faria dali para frente, conquanto pensasse no sorriso largo do moreno que iria lhe entregar as resmas a partir de então. As duas concordaram, todo mundo daquele lugar gostava muito dele. Sem mais o que dizer se despediram.
O CÉU DE SALVADOR
Quando Jamile abriu a porta todos do departamento riram.
“Parece que saiu de um hospital...” Amanda deu três batidinhas na superfície lisa da mesa, já arrependida daquela fala.
Mário perguntou se a mãe não se incomodou de ter cortado um pedaço da cortina para fazer aquilo. Antônia o censurou, ainda que não disfarçasse o riso.
“Não está levando essa história muito a sério?”
Não entendiam a preocupação exagerada de Jamile com aquela doença. O Brasil não era Europa. O vírus não vingaria por aqui, entre trópicos. Contavam dois os dias consecutivos de Jamile com máscara durante todo o horário de expediente. Uma faixa de tecido azul que cobria boca e nariz. Apesar de rirem da máscara, quando ouviam a voz abafada sob aquele tecido, esticavam um sorriso sem jeito, no fundo constrangidos por não se prevenirem daquelas letras e números que se liam em conjunto, como em um rótulo de exame. O único que não se intimidava era Cerbinni, para quem todo aquele teatro com máscara e distância não passava de drama feminino.
Em 2018, Cerbinni desfilava pela sala com panfletos da campanha presidencial onde se lia “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Sempre que podia, vestia algo com o número 17 estampado. Chamou de mártir um candidato de nome Messias, quando este foi esfaqueado em Juiz de Fora. O candidato de nome Messias, agora elevado a mito, foi eleito. Antônia brincou que nunca vira alguém tão feliz com o resultado de uma eleição. Mesmo algum tempo após a eleição, Cerbinni não escondia o sorriso com a vitória. Sentia a conquista como sua. Costumava dizer que só não torceu pelo presidente gente rica, que nunca foi assaltada depois de um dia de trabalho. “Filhinho de papai, herdeiro, essa esquerda de iphone”. Jamile era pobre e chorou quando ouviu o resultado da eleição. Berrou “ele não” tantas vezes que dormia com o zumbido da própria voz, aguda, um grito fino confundido com sonho. Apelidou Cerbinni de BolsoMinion, variando entre Minion ou apenas mini. “Mini em tudo”, zombava, quando ria alto com Cecil. Cerbinni não sabia das brincadeiras das funcionárias. Parecia até respeito a maneira como baixavam os olhos nas reuniões de segunda-feira. Não ouviu quando uma disse a outra o quanto o detestava. Com seus panfletos ridículos. Sua idolatria estúpida. “Um idiota que acredita em mamadeira de piroca.”
Cecil não deixava de ter pena do chefe. Ainda mais quando ele tentava se aproximar delas estabanado. “Acho que ainda estou na puberdade”, disse uma vez, rindo e apontando para uma espinha na testa, elas olharam para as entradas grandes, o cabelo ralo, por pouco Jamile não soltou uma gargalhada diante daquele homem de meia-idade que usava Grecin nos fios remanescentes no alto da cabeça. Em muitas ocasiões, Cecil achou cruel como a amiga se referia ao chefe, mas preferiu não dizer nada. Em 2020, quando Jamile apareceu na sala com o tecido azul ocultando metade do rosto, Cecil não apenas se incomodou com a colega andando para cima e para baixo com um pedaço de pano sobre a boca, sem se ouvir nada do que ela falasse, como chegou por um instante a concordar com Cerbinni que sim, que mulher pra fazer drama!, se recriminando em seguida. Mas bastou menos de um mês para que Cecil voltasse a ficar do lado da amiga, usando ela mesma uma máscara rosa confeccionada pela avó para complementar a aposentadoria. Os óbitos por complicações da doença passaram a figurar nas notícias.
A empresa era um prédio baixo, com as janelas para a rua. Acomodava uma gráfica no subsolo. Cecil gostava de subir as escadas com o café ainda quente. Ele esfriava enquanto ela subia os quatro andares, o que não a impedia de chegar até o seu departamento de dois em dois degraus agarrada no corrimão, no lugar de se espremer no elevador entre os colegas usando colônia doce. Quando começaram a alardear a obrigatoriedade das máscaras e a ameaça do vírus, Cecil no fundo sentiu alívio por não ter mais de se explicar por que preferia as escadas ao elevador, só dizia covid baixinho sob o tecido rosa. Ninguém a ouvia, mas entendia e se afastava, sem ver o riso cansado de Cecil. Ficava exausta toda vez que abanava as mãos porque não, não gostava de exercícios, não queria emagrecer, só não queria sentir aquele cheiro doce de manhã. Ou mesmo aquela mistura de perfume e hálito ruim de Cerbinni habituais das segundas e quartas-feiras, quando o chefe ia à empresa.
Ocorre que as máscaras começaram a incomodar Cerbinni. Se os outros se afastavam assim que Cecil tentava desastrada gesticular com as mãos tudo o que tinha lido no celular sobre covid, o chefe mantinha-se onde estava. Por um momento ela sentiu saudades de quando se explicava por que escadas, agora o chefe não a deixava em paz, por que máscara?, você acredita nessa doença?, sabia que essas mortes noticiadas não são por covid?. Cecil balançava a cabeça pensando nos dias da semana em que não o encontraria em frente ao elevador, tão inconveniente logo de manhã. Disse à Jamile que seu perfume era de velha, lembrava o de uma mulher, Eliane, que conhecera quando criança e que também tinha mau hálito.
Quando o número de mortes por covid passou de cem, Cecil só conseguia pensar na avó, no que significava ser grupo de risco. Muitos da empresa não usavam máscara. Todo dia no metrô via alguém brigando com algum funcionário, era direito seu bafejar as mãos, comer um pedaço seco de esfiha onde bem entendesse. No trabalho, passou a odiar o chefe sempre que ele chegava mais perto com o perfume da Eliane e uma profusão de perdigotos. Brincou no grupo do WhatsApp que, com a máscara, as pessoas finalmente iriam provar do próprio veneno, ou melhor, do bafo quente que soltavam nos outros, pena que nem todo mundo usava. Apagou a última frase antes de enviar, o chefe sempre estava online.
Era março de 2020 quando ouviu pela primeira vez a palavra lockdown. Não entendeu direito o sentido daquela palavrinha. Jamile tentou explicar o que era uma pandemia, que se continuassem do jeito que estava, muita gente morreria. Não seria nada mal trabalhar de casa, pensou. Mas aquilo nunca aconteceu. A cidade estava em quarentena, mas os funcionários da empresa, não. Depois de semanas, Cecil se via espremida no metrô, com a máscara rosa, odiando o chefe às segundas e quartas-feiras. No dia em que a polícia passou perto do prédio, todos tiveram de apagar as luzes para que não se visse ninguém das janelas. Jamile xingou quem pudesse ouvi-la, mandou o chefe praquele lugar e foi demitida no dia seguinte.
Houve um dia em que a avó de Cecil se sentiu mal. Não pôde ser levada para o hospital, não estava com falta de ar. Sua saúde piorou. Já no caminho para o pronto-socorro, desmaiou. Precisou ser entubada, estava com covid. A neta foi afastada da avó, não podia ter nenhum tipo de contato. A enfermeira Mari, uma moça magra, que sempre andava com o cabelo preso em um coque frouxo, prometeu que daria notícias. Semanas depois a avó teve uma melhora, Mari fez uma videochamada. Eram seis da manhã, Cecil conseguiu ver a avó, que falou de Salvador, como é linda sua terra! Iriam para lá assim que ela saísse daquele lugar. Foi para o trabalho agarrada à voz sumida de sua avó. Passou o resto do dia presa àquela promessa. Iriam para Salvador, não duraria muito, estava certa. Só se deu conta que tinha esquecido o celular na volta para casa. Lá estava ele, na cama, com muitas ligações perdidas. Quando retornou a ligação, se apoiou na cadeira. Pela primeira vez chamou Eliana de mãe.